quarta-feira, 12 de maio de 2010

Lapsos e colapsos

31 de julho de 2008. [nessa data, escrevi o texto abaixo]


Não poderia partir de outro ponto se não o dia desta escrita. Sabemos disto mais do que ninguém. Dia a dia nos fazemos. Os tempos, as dores, os espaços, nossas lembranças, todas as nossas conversas, todas as imagens e incertezas: tudo é fruto de um movimento complexo e que muitas vezes não é considerado por utilizar lógicas não positivistas, matemáticas, “sígnicas” (uma interferência de Durand! O neologismo é uma brincadeira minha – fala de minha diurnidade). Lapsos e Colapsos.

[Pausa. Fui ver uma imagens dequele tempo]


O menino de aproximadamente 14 anos, o ano era 1989, viu o espetáculo ZYDRINA. Encantou-se. Teve naquele momento um prazer tão grande que seu corpo não sobrevive mais sem aquela sensação: orgasmo! A mãe religiosa certamente teve algum pânico: ele se importou? Não. Depois de estudar como bolsista por três anos em um colégio de padres que não possuía padres – possuía umas diretoras tradicionalíssimas – seguiu para São Paulo – teve orgasmos de fato! A imagem do espetáculo que havia assistido enquanto menino reverberava na sua carne mais do que nunca. Era uma memória que não tinha precedente.
A casa que o acolheu foi de uma tia muito velha, era quase uma avó, tia Alzira: cabelos brancos, voz suave, diabética de aplicação de insulina diária (e comia colheradas de “nescau”, escondida das filhas: uma operária, uma religiosa da igreja batista, uma promotora gostosona, uma presbiteriana). Ficou nesse lugar até ir para um emprego que durou três dias: tentaram condicionar seu corpo, acostumado pelo ZYDRINA a certos prazeres a outras coisas, a carregar sacos de batatas (um sub-emprego no McDonalds). Jogou os sacos de batatas no chão e foi participar de um seminário sobre “imagens do inconsciente”: conheceu duas pessoas importantes: Rubens Correa, Antonin Artaud.

O ator é como um verdadeiro atleta físico, mas com a seguinte correção surpreendente, que ao organismo do atleta corresponde um organismo afetivo análogo e que é paralelo ao outro, que é como o duplo do outro embora não atue no mesmo plano.
O ator é como um atleta do coração.
Também para ele vale esta divisão do homem em três mundos, e a esfera afetiva lhe pertence por direito.
Ela lhe pertence organicamente.
Os movimentos musculares do esforço são como a efígie de um outro esforço duplo, e que nos movimentos do jogo dramático se localizam nos mesmos pontos.
Ali onde o atleta se apóia para correr é o mesmo lugar onde o ator se apóia para lançar uma imprecação espasmódica, mas cujo curso é rejeitado para o interior.
Todas as surpresas da luta, da luta livre, dos cem metros, do salto em altura encontram, no movimento das paixões, bases orgânicas análogas, tem os mesmos pontos físicos de sustentação.
Com a correção de que aqui o movimento é inverso e que, em relação à respiração por exemplo, enquanto no ator o corpo é apoiado pela respiração, no lutador, no atleta físico é a respiração que se apóia no corpo.
(...)
O que a respiração voluntária provoca é uma reaparição espontânea de vida. Como uma voz nos corredores infinitos cujas margens dormem guerreiros. O sino matinal ou a trompa de guerra atuam sobre eles para lançá-los regularmente na refrega. Mas se uma criança de repente gritar “olha o lobo”, esses mesmos guerreiros despertarão. Despertarão no meio da noite. Alarme falso: os soldados voltam para os quartéis. Mas não: chocam-se contra grupos hostis, caíram numa verdadeira armadilha. Aquela criança gritou no sonho. Seu inconsciente mais sensível e flutuante se chocou com uma tropa de inimigos. Assim, por via indireta, a mentira provocada do teatro recai sobre uma realidade mais temível que a outra e da qual a vida não suspeita.

As falas de Artaud reverberam sempre e muito na minha vida. O teatro para mim, depois daquele encontro, não era o mesmo.

Em São Paulo permaneci por algum tempo.

Fiquei extasiado com Atunes Filho, um homem do teatro, não do espetáculo – seus motivos são vivos, não há aparências, o homem é um ser vivo.

[Pausa. fui ao site do CPT ver imagens, ler comentários]

Antunes me ensinou muito sobre ilusão. Cada um dos espetáculos seus que vi estão marcados em meu corpo. Como nos lembra Danis Bois, apoiado em Merleau-Ponty,
O mundo da percepção invade o do movimento (...) Igualmente, o mundo das idéias invade o da linguagem (a gente o pensa) que, inversamente, invade o das idéias (a gente pensa porque fala).

[...]

Desculpe, disse que estava em pleno devaneio e, de repente, veio uma citação formal.

[...]

Antunes me ensinou o que eu não compreendera com ZYDRINA.

[...]

Depois de ter visto por algum tempo teatro em São Paulo, me desloquei para o Rio. Não que houvesse algo ali que realmente me interessava. Era o entusiasmo de todos em imaginar que eu poderia quem sabe ser um astro de TV.
Passei pela Globo por duas vezes: uma para pagar o aluguel (participei como ator de uma abertura de novela e outra para namorar)
Um dia estive em uma festa na casa de uma atriz da Globo que, com sua infelicidade estampada, me fez voltar para São Paulo.


[...]

Quando cheguei em São Paulo, de volta, num de meus divertimentos, apaixonei-me. Fiquei sem fazer nada por seis meses. (hoje sinto saudades desse fazer nada proporcionado por esse amor)

[...]

Quando o amor se foi, voltei à Paranavaí, minha terra natal e retomei Artaud e Antunes numa empreitada deliciosa entre 1994 e 1996.
Esses dois anos foram de uma produção invejável: conheci Elmita, uma professora de literatura (da qual sou discípulo). Com ela tive as melhores e mais sinceras experiências com práticas de ensino. Ela me deixou à vontade para conduzir cerca de 200 crianças numa investigação sobre literatura. O entusiasmo dela era tão grande que eu me deliciei por um ano inteiro com um encontro diário com crianças: houve uma certa osmose: tornei-me um pouco criança para sempre.
No mesmo ano dessa experiência como professor (minha primeira e mais feliz), conheci Emir. O meu diretor modelo.
Elmita e Emir foram meus mais autênticos professores. Com eles aprendi liberdade de fazer. Emir morreu antes desses dois anos. Elmita está ainda lá. Deve vir para Pelotas ainda neste ano – por causa dos meus sentimentos de saudade!!


Quando Emir morreu fiquei um tempo sem chão. Ele morreu no dia da estréia de um espetáculo no qual eu era o protagonista. A estréia teve que ocorrer uma semana depois. O choro que verti foi para lavar seu próprio pulmão e veias: Emir era boêmio, de wisky, Chop e cigarros Charm.

Três meses da morte de Emir a Fundação Cultural de Paranavaí nos barrou os ensaios. Não hesitei!! Aluguei um espaço e fundei com alguns amigos o “Teatro Emir Mância”. Elmita era sua maior colaboradora. No teatro atendemos mais de 200 crianças por semana e montamos uma quantidade enorme de espetáculos.
Manter um teatro no Brasil é extremamente difícil. Fui à falência no ano seguinte. Tive que vender tudo o que possuía. Elmita me ajudou, mas eu sou imperioso, quis pagar cada centavo!!


[...]

Depois da falência, fui para Londrina. Conheci Marcelo. Fui tomado de paixão por ele. Casei até hoje: o ano era 1997. Cursei Artes Cênicas – Interpretação Teatral na UEL – Universidade Estadual de Londrina, a primeira turma do curso.
Trabalhei com Nitis Jacon, diretora de ZYDRINA. Com Nitis aprendi que a vida é podre. Claro, ela enquanto dama do teatro brasileiro me ensinou política. O trabalho com a organização do FILO, Festival de Teatro Internacional de Londrina, me colocou em sintonia com a minha profissão. Como as questões de mercado me amedrontam, fugi para o mestrado em Teatro em Florianópolis. Fui feliz em Londrina, mas o preço era alto demais para meu corpo artaudiano.
Em Florianópolis, antes de ingressar no mestrado, iniciei uma prática como docente de Dramaturgia na UDESC. Ensinei do Drama Aristotélico ao Drama Épico. Foi uma das melhores escolas que já tive: os alunos foram meus companheiros. Fui sincero com eles e construímos conhecimento juntos.


[...]

Aí entrei para o mestrado. Fui orientado por Biange (Beatriz Cabral). Certamente, uma das educadoras em teatro-educação mais generosas que já conheci. Biange respeitou meus tempos. No mestrado trabalhei com temáticas que me permitem investigar sistemas de ensino e de metodologias de teatro na escola e em comunidades.

[...]

Pausa

[...]

Hamlet é uma obra que tem o alcance do mito; fixada na consciência cultural européia, possui a capacidade singular de engordar a nossa verdade sobre a condição humana. Poderíamos dizer; mostra-me como vês Hamlet e eu te direi quem és.

[...]

Hoje estou aqui. Vivo em Pelotas. Trabalho arduamente para construir um Núcleo de Teatro audacioso. Muitas vezes minha paixão é tomada por fúria, outras vezes por ser imperativo. Outras ainda por ser hiperativo.

[Pausa.]

O que sinto na gestação da poesia? Paciência. (Adélia Prado)


texto de Adriano Moraes

3 comentários:

LeonardoDias disse...

Parabéns ao núcleo de teatro, por mais uma vez, compartilhar de seu melhor! É prazeroso demais poder saber da vida de vocês. Das inquietações, de onde moraram, dos autores, peças,dramaturgos,teóricos, personagens e momentos que retumbam em suas mentes. Dos Hamlets! Bom Trabalho a todos!

GEPPAC-UFPel disse...

Que bom, Leonardo.
O interessante é que fazes parte do Núcleo também. Abraços, Adriano

Unknown disse...

Aprecio textos autobiográficos trazem uma dimensão de memória na construção de idéias, cores, sensações de como se chega a ser quem se é, e como se atua a partir desta trajetória.